Em geral não é difícil fazer um espírito recém-desencarnado desistir de passar o tempo a observar o cotidiano dos vivos.
Basta lembrá-lo de quantas outras coisas mais interessantes e emocionantes ele poderia estar fazendo.
Mas nem sempre é tão simples assim.
O dia já havia amanhecido e seria esplendoroso, nenhuma nuvem manchava o céu.
O casal dormia profundamente na grande cama, os corpos astrais a flutuar sobre os corpos físicos como balões, ligados apenas pelo fino cordão.
Uma diferença era marcante:
o corpo astral da mulher estava sereno, tão quieto quanto seu corpo físico.
Já o corpo astral do homem parecia em constante ebulição, refletia o seu desconforto.
Sentado numa poltrona em frente à cama estava o motivo:
um espírito raivoso,
que alguns vivos chamam de encosto.
Ele parecia em transe, mas olhou para mim quando me aproximei.( espirito protetor)
- Você de novo?
Não desistiu?
Espíritos bonzinhos não têm mais o que fazer? - ironizou.
Podemos também chamar estes espíritos de perdidos, um bom nome, mas não era esta a impressão que ele passava.
Era determinado,
seguro,
certo de seus objetivos e também de como levá-los a curso.
Queria vingança.
No dia anterior eu já havia tentado mostrar que ele estava perdendo tempo, mas a raiva o deixava surdo aos meus argumentos.
Por isto eu voltara com outro plano.
- Não, não desisti.
E se você pode ficar por aqui, por que eu também não posso?
- Porque você não tem motivo, eu tenho.
Morei na casa de campo desde criança e ele nunca me ajudou, só queria que eu cuidasse das plantas.
Impediu até que eu estudasse, me condenando a ser jardineiro para sempre.
Como se eu fosse um escravo, uma outra propriedade!
Em vida eu nada podia fazer, precisávamos do emprego, mas agora posso atingi-lo.
E não tente me desmentir, basta olhar para ele.
Depois que cheguei ficou nervoso, irritadiço, desanimado. Parece até que está envelhecendo mais rápido.
Era este o problema.
Enquanto o espírito sentisse que ainda podia influenciar o mundo dos vivos, não conseguiria pensar em mais nada.
Mas eu sabia como resolver a questão.
- Se o que você quer é atingi-lo, por que não fala tudo de uma vez?
- Como assim, falar? Eu estou morto! - replicou, como se eu fora um asno.
- Fale quando ele estiver sonhando. Ele vai ouvir.
- Você na certa pensa que sou algum tipo de idiota, não é? Se fosse tão fácil, todos os mortos falariam com seus parentes nos sonhos...
- Não estou falando que é fácil. Estou falando que sei como fazer para que ele te ouça.
- E como você aprendeu? - desconfiou, mas sem conseguir esconder o interesse.
Eu o havia fisgado.
- Estou no astral há séculos, tive tempo para aprender alguma coisa.
Ele ainda hesitou um momento, mas depois acenou com a cabeça, pedindo para que eu fosse em frente.
Solene, flutuei até o corpo astral do homem( dormindo) e com alguns leves e precisos movimentos consegui atrair sua atenção.
Depois não foi difícil induzi-lo a me acompanhar.
O espírito raivoso parecia admirado com minha destreza, o plano estava funcionando.
Sem perda de tempo, comecei a falar:
- Você está sonhando, mas pode nos ouvir.
Preste atenção,
pois agora você terá um encontro importante.
Vai descobrir quem anda te amedrontando e atrapalhando a vida.
Então fiz um sinal para que o espírito se aproximasse.
Ansioso, ele colocou-se frente a frente com o corpo astral do vivo, que o reconheceu e reagiu de pronto.
Sorrindo com desdém, desviou o olhar e passou a flutuar a esmo pelo quarto, como um balão de criança, como uma pluma solta ao vento.
O espírito não se conteve, explodindo de raiva:
- Chame-o de volta! Ainda nem comecei a falar!
- Não adianta, você acaba de perder a influência sobre ele.
Não há dúvida que ele recebia uma vibração negativa, mas ela tornou-se inofensiva agora que ele sabe de quem partia.
Afinal, você está morto e ele não acredita em vida após a morte.
Mau-olhado não pega em quem não acredita, nunca ouviu falar?
Agora ouça o meu conselho, siga o seu caminho.
- Vou continuar aqui e ninguém pode me impedir! - insistiu, irado.
- Você prefere mesmo assistir às vidas dos outros ao invés de se interessar pelas suas?
Não tem nem curiosidade em saber quem foi e o que fez nas encarnações anteriores?
Antes que o espírito respondesse, um despertador disparou.
No mesmo instante os corpos astrais do casal voltaram para seus corpos físicos, sugados violentamente.
Logo o homem sentou-se bocejando e desligou a campainha.
Depois esfregou os olhos e percebeu que sua mulher também despertara.
Então começou a falar :
- Você não imagina o sonho maluco que tive esta noite.
Estava preso numa espécie de areia movediça úmida, escura e espessa,(corpo físico) mas, conformado, nem tentava fugir.
Foi quando surgiu alguém que conseguiu me tirar de lá facilmente, avisando que faria uma grande revelação.
Mas não pôde fazê-la.
Fomos interrompidos, sabe por quem?
Pelo filho da caseira de Teresópolis, aquele que morreu atropelado no mês passado.
Pode? Como era mesmo o nome dele?
O engraçado é que logo depois passei a me sentir melhor, como se uma âncora tivesse sido arrancada dos meus pés.
Que loucura, né? Sonhos são mesmo uma grande bobagem, nada faz sentido!
O bom é que acordei sem dor na cabeça e nas costas.
Acho até que vou ao clube jogar tênis.
O espírito ficou a pensar, amargurado, até que virou-se para mim.
- Vou embora - afirmou, vencido.
- Sabe para onde ir? - perguntei.
- Não, mas encontro o caminho sozinho.
- Boa sorte, então.
Sem sequer me responder, o espírito atravessou a parede e partiu em busca de passado e futuro.
Deixei-me ficar ali a meditar sobre como é forte e instável o impulso de vingança, até que a voz da mulher me interrompeu.
- Falando em Teresópolis, precisamos despedir a Dona Rita.
Depois que o filho morreu, ela não trabalha como antes, vive a choramingar pela casa.
Vou ligar para umas amigas e ver se elas conhecem alguém mais jovem, sem filhos, de confiança e que aceite morar na serra.
- Cuidado para não se cansar com tanto afazeres - ironizou ele, alfinetando a mulher.
Ainda bem que o espírito não estava mais ali, senão eu teria trabalho dobrado para convencê-lo a partir!
Mas o casal não precisava de influência externa para viver sob tensão,
o clima era de guerra.
Colhiam o que plantaram.
Antes que ela reagisse, bateram na porta.
Era a empregada, carregando uma bandeja.
- Elza, não precisa mais trazer os remédios junto com o café.
Seu patrão acordou melhor.
- Foi porque pedi por ele no centro, patroa.
Vivo no meio desde pequena, a senhora sabe, sinto as coisas.
Tinha um espírito ruim encostado no patrão, mas com certeza enviaram um bom para buscá-lo.
- Ah tá, Elza, você e seus espíritos!
Ele melhorou e pronto, foi só isso! - desdenhou a patroa, caminhando até o espelho.
- Meu Deus, como estou envelhecida!
Plásticas, ginástica e ainda uma fortuna com médicos, cremes e massagens!
Não sei mais o que fazer para parecer jovem!
Em vez de aproveitar a dádiva de estar vivendo numa escola rica como a Terra, ela preferia apenas sonhar com o dia em que pareceria outra vez jovem.
E, mesmo que este dia chegasse, ela em nada melhoraria.
Continuaria apenas se preocupando em não envelhecer, em burlar a natureza.
Ora, para ficar mais jovem basta nascer de novo, pensei, amargurado, saindo pela janela.
Lá fora o dia continuava magnífico e eu tinha mais o que fazer.
Conto extraído do web site Carlos Luz