Hoje eu tive um sonho!...

[Cristal]

Andava eu pelas ruas ladeadas por ipês amarelos e o sol se embrenhava por entre seus galhos e tudo ao redor se tornava iluminado. Nas esquinas viam-se crianças brincando de roda e o barulho era percebido como um coral de anjos em uma alegria ritmada. As casas eram livres, não havia muros, nem grades, só jardins num arco-íris sem fim. Da padaria da esquina vinha o aroma perfumado do pão nosso de cada dia e o sonho doce provocava o paladar, sem a preocupação de uns quilinhos a mais.
Era primavera e o entardecer trazia a melodia harmoniosa de sabiás, rouxinóis e outros cantos indecifráveis de pássaros buscando o refúgio para a noite que se aproximava.
Sentado em um banco de uma das inúmeras pracinhas do lugar, um senhor me chamava a atenção. Devia ter uns oitenta anos, vestia um terno branco de linho e lia tranquilamente um jornal local. Não sei por que, aproximei-me dele e me sentei ao seu lado. Cumprimentamo-nos informalmente e ele me ofereceu uma das páginas do folhetim, numa atitude de gentileza. Apesar do meu desinteresse em saber das notícias ali relatadas, não tive como recusar e me dispus a ler. Mas, para meu espanto, a página estava toda ela em branco. Nem uma letra sequer para que uma palavra fosse formada. O velho senhor, percebendo a minha surpresa, virou-se para mim e sussurrou ao meu ouvido: _ Filho, pensavas achar o que nessas páginas? Aqui onde estás, nós é que escrevemos as manchetes. Somos páginas em branco pois estamos reconstruindo nossa história. Tudo o que vistes, até chegar a este banco nesta pracinha, são memórias perdidas em seu inconsciente e que vieram à tona no momento em que fizestes a passagem. Se refletires um pouco, encontrarás dentro de ti as lembranças embutidas em tua alma de lugares e momentos que viveu e que foram verdadeiramente importantes para você. O que quero lhe dizer é que a alma está sempre procurando o melhor, o que nos faz feliz e nos acrescenta para o bem. Lugares, pessoas, aromas, qualquer situação que alimente em nós a alegria e o aconchego.
O que era aquilo tudo? - me perguntei. Que conversa era aquela, cheia de enigmas e despropósitos? Afinal, quem era aquele senhor que me entregará um jornal em branco para ler? Decididamente tratava-se de um louco, um velho em total debilidade mental. Precisava sair dali e me propus a isso, levantando-me abruptamente do banco.
O inesperado se deu em um segundo. Antes de me retirar daquele lugar, voltei os olhos para mais uma vez observar o tal senhor. Seus olhos fixos em mim trouxeram a revelaçao de todo aquele mistério. No fundo daqueles olhos que me encaravam com firmeza mas cheios de compaixão descobri a presença de alguém que há muito havia perdido. Era meu pai. Num instante todo o véu se rasgou e percebi que havia andado pelos caminhos da minha infância. Tudo era igual, desde os ipês amarelos até o sonho de padaria, que todos os dias saboreava ao voltar da escola. Me dei conta, então, que havia morrido. De algum maneira estava morto.
Meu querido pai, sentindo a angústia que se abatera sobre mim, simplesmente pegou minha mão e me entregou novamente a página do jornal em branco e falou baixinho em meus ouvidos: _Filho, nada se perdeu. Você, a partir de agora só terá que preencher estas páginas em branco com uma nova história. O que foi escrito antes já está arquivado no tempo e tens aqui a oportunidade de começar algo novo. A vida, filho querido, é assim. Uma história sem fim.
De repente, um barulho irritante começou a soar. Era o despertador.
Acordei.
Hoje eu tive um sonho...


autoria: SUELI COELHO.-