Anjo de Luz

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Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Não vos inquieteis, pois, pelo dia amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo.

 
 

Viver sem dinheiro

 
 
Em Utah, um troglodita moderno vive sem dinheiro há quase mais de uma década. Costumavam pensar que ele era louco. Agora pensam que talvez seja santo.

Daniel Suelo vive numa caverna. Ao contrário da maioria dos americanos - cheios de dívidas de cartões de crédito, aprisionados pela amortização da casa, apavorados de perder o emprego, ele não se preocupa com a crise económica pois descobriu que a melhor maneira de permanecer rico é nunca ser rico em primeira instância. Há 12 anos, no Outono de 2000, Suelo decidiu deixar de usar dinheiro. Deixou o dinheiro como um drogado deixaria, de uma vez por todas, o vício da droga.

A sua caverna, escondida bem alto num canyon com quedas d'água por perto, fica a 1 hora a pé de Utah, uma cidade no deserto de Mojave. O blog de Suelo, mantido de graça na Biblioteca Pública, sugere que ele tem um pouco de santo e um pouco de louco.

"Quando eu vivia com dinheiro, estava-me sempre faltando alguma coisa", ele escreve. "O dinheiro representa a falta; representa coisas no passado (dívida) e coisas no futuro (crédito), mas nunca representa o presente". 

Foi num dia quente de primavera que descobri a sua caverna, onde encontrei uma mensagem: Entre, come à vontade e serve-te de tudo que quiseres (nada daqui é meu).

Do lado de fora a caverna parecia uma lágrima escavada, bem pequena, com espaço suficiente apenas para umas panelas penduradas no teto, um "forno" construído debaixo de uma pedra, uns baldes cheios de feijão e arroz, uns cobertores no chão e praticamente mais nada. Há 3 anos que Suelo ali mora.

A noite cai e as estrelas brilham. Suelo é esguio e bronzeado. Ontem ele reconstruiu a entrada da sua caverna, arrastando rochas enormes para fazer uma escada. Suas mãos estão pretas da sujeira e o seu cabelo parece um ninho de pássaros, cheio de poeira.

Sorrindo, ele mostra os desperdícios que encontrou na sua visita semanal às ruas de Mojave: um par de luvas e um gorro de lã, um casaco de Inverno e um cinto branco de nylon ainda envolto em plástico, sandálias e um par de calças que está vestindo. Encontrou também latas de atum e peru e uma vela. Não se vive mal dos produtos desperdiçados pela sociedade de consumo. 

"Lá me conseguiste encontrar"
, diz ele. Ofereço-lhe um saco de maçãs e um bloco de queijo que comprei no supermercado mas de repente a oferta parece pequena.

Suelo acende a vela e faz uma fogueira. A gruta depressa aquece. Lembro-me de S. João Baptista, que sobreviveu no deserto comendo mel e gafanhotos.

Suelo nem sempre viveu assim. Saiu da Universidade de Colorado com uma licenciatura em antropologia, pensou tornar-se médico, ocupou postos de trabalho, teve dinheiro e contas bancárias. Em 1987, depois de vários anos como assistente de laboratório no hospital de Colorado, juntou-se ao Peace Corps e foi colocado numa aldeia no topo dos Andes, no Equador. Estava encarregado da saúde das tribos dessa área, ensinando primeiros socorros, nutrição e dando medicamentos quando necessário; o momento de que mais se orgulha foi quando ajudou a dar à luz três bebês.

A tribo vinha enriquecendo há já uma década, e durante os dois anos que Suelo lá esteve ele viu como os aldeãos começaram a adotar a economia da modernidade. Começaram pela primeira vez a vender os alimentos que produziam - quinoa, batata, milho, lentilhas -, e usavam o dinheiro que recebiam para comprar coisas de que não precisavam, ou seja, refrigerantes, farinha branca, açúcar refinado, aletria e grandes sacos de MSG para temperar as refeições. 

"Quanto mais gastavam
", diz Suelo, "mais a sua saúde declinava.A deterioração era vísivel e facilmente medida em gráficos que eu produzia. Era como se o dinheiro os estivesse empobrecendo." 

Em seguida Suelo mudou-se para Mojave, onde trabalhou num abrigo para mulheres durante 5 anos. Ele queria ajudar as pessoas, mas ser pago para ajudar parecia-lhe desonesto - até que ponto é verdadeira a ajuda que exige recompensa? A resposta estava, em parte, no cristianismo de sua infância, em que seguir Jesus significava adotar o estilo de vida prescrito no Sermão da Montanha.

"Abandonar as posses, viver além do crédito e dívida", explica Suelo em seu blog, "dando e recebendo gratuitamente, perdoando todas as dívidas, devendo nada a ninguém, vivendo e caminhando sem sentimentos de culpa... rancor [ou] superioridade." 

Se o objetivo era alcançar um estado de graça, então teria de ser de graça no sentido clássico, do latim gratia, significando favor, mas também, de graça, gratuitamente.

Em 1999, viveu num mosteiro budista na Tailândia - tinha poupado dinheiro apenas para o voo. Dali caminhou até à Índia, onde se viu na boa companhia dos sadhus, ascetas que vivem sem dinheiro. Os 5 milhões de sadhus podem ser encontrados andando pelas estradas e florestas por todo o subcontinente, buscando a iluminação através da auto-abnegação. 

"Eu queria ser um Sadhu"
, diz Suelo. "Mas que bem me faria ser um Sadhu na Índia? O verdadeiro teste de fé seria a regressar a uma das nações mais materialistas e devotas ao dinheiro do mundo e ser um Sadhu ali. Ser vagabundo na América e fazer disso uma arte - essa ideia encantou-me."

O ritual matinal é simples e lento: uma chávena de chá e um mergulho na água fria do riacho. Depois, um banho de sol e coleta de alimentos silvestres para o almoço. Entre as rochas encontramos plantas de mostarda, cujas folhas cruas são tão saborosas como a couve-flor, e perto do riacho onde Suelo vai buscar água encontramos folhas enormes de agrião e montes de cebolas selvagens.

Digo-lhe que viver sem dinheiro parece-me ser difícil. Ele diz-me que nunca passou sem uma refeição (amigos em Mojave dão-lhe às vezes de comer). Quanto a doenças, viu-se mal numa ocasião em que comeu um cacto que havia identificado incorretamente. Vomitou, ficou a delirar, pensou que ía morrer e chegou a escrever uma carta dirigida a quem encontrasse o seu cadáver. Mas ficou melhor.

"O objetivo é precisamente esse. As dificuldades são positivas, nós precisamos de desafios. O nosso corpo precisa de desafios, o nosso sistema imunológico precisa de desafios. As minhas dificuldades são simples e fáceis de gerir". 

Quando lhe digo que pago $2.400 por mês de renda de casa em Nova York, ele abana a cabeça. O que ficou por dizer foi que estava ali eu, escrevendo sobre ele a fim de ganhar dinheiro, para uma revista que depende, para sua sobrevivência, do dinheiro que obtém dos anúncios e da publicidade de um consumo conspícuo.

Ao preparar o jantar, Suelo diz-me que há uns anos atrás ele tinha um vizinho no canyon, um alcoólico que vivia numa caverna maior que a dele. O velho passava os dias buscando ouro no riacho e todos os meses conseguia dinheiro suficiente para comprar a cerveja que o mantinha bêbado. Suelo considera as riquezas que encontramos.

"E se víssemos o ouro pelo que é?" ele diz meditativamente. "O ouro é bonito mas é praticamente inútil. Alguém decidiu que tem valor, e toda a gente aceitou esta decisão. Os nativos das Américas pensavam que os europeus eram loucos por causa do seu desejo por uma substância amarela tão inútil." 

Sueo vai fritando o agrião, as folhas de mostarda e as cebolas selvagens, misturando amêndoas que apanhou no pomar de um amigo e manteiga de boa qualidade que alguém tinha deitado fora.

No topo da falésia, a vida de Sadhu parece razoável. Mas eu não quero viver numa caverna. Gosto de ter casa de banho e electricidade. No entanto, a verdade é que há uma beleza óbvia na simplicidade da subsistência. Nos dias de hoje não respeitamos os nossos ascetas e rejeitamos a ideia de que o dinheiro talvez seja uma espécie de alucinação consensual. Para a maioria de nós é tão real quanto o próximo pagamento de aluguel. Suelo não recebe assistência pública mas sobrevive parcialmente devido à nossa realidade, aos excessos descartados do sistema monetário que ele denuncia - um sistema que, recentemente, parece estar a caminho do precipício .

Suelo tem 48 anos mas não se preocupa com a velhice. "Vou fazer o que as criaturas têm feito por milhões de anos", diz ele. "Porque é que acham que morrer no deserto é triste mas que morrer na enfermaria geriátrica não?"
Se quiserem, podem ler o original aqui.
Também podem ver e ouvir Suelo neste vídeo (em inglês).
do blog

Veja o vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=PxJjyZFXKSA
Outros fazem o mesmo:

ENTREVISTA - O homem que vive sem dinheiro

http://www.justfortheloveofit.org/index.php
Mark Boyle é um irlandês de 32 anos que decidiu romper com a sociedade atual e o que considera seu principal símbolo: o dinheiro. Formado em administração de empresas, há 4 anos ele tomou uma atitude radical e passou a viver sem um tostão no bolso. Ele mora no campo, come o que planta, toma banho em um rio, cozinha em uma fogueira e abdicou das mordomias da vida moderna. E tem mais: ele quer que você também siga seu estilo de vida. 

Boyle tomou essa decisão depois de ver como estamos levando o planeta para o buraco. Segundo o ativista, nossa economia estaria destruindo a natureza e arruinando a vida de nossos semelhantes. E a culpa de tudo estaria no dinheiro, que cria uma distância entre o homem e os produtos que ele consome. “Não vemos o efeito de nossas compras no ambiente. Não sabemos por quais processos os produtos passaram, quais os danos que eles causaram. Não sabemos mais como o que consumimos é produzido”, disse ele à revista GALILEU. 

Apesar de evitar a civilização moderna, Boyle não é nenhum ermitão. De um computador carregado a energia solar, ele mantém um blog atualizado para propagar as suas idéias e juntar possíveis adeptos. Em 2010, ele lançou o livro The Moneyless Man (que vai ser lançado em julho no Brasil pela editora Best Seller, com o título de O homem sem grana). Até o final do ano, ele deve lançar mais um livro no Reino Unido. 

Há 6 meses, Boyle retrocedeu um pouco em suas convicções e voltou a lidar com o vil metal. Mas ele diz que tem um objetivo nobre: vai construir uma comunidade que siga seu estilo de vida, onde todos terão acesso aos alimentos, e o dinheiro não terá valor algum. Durante uma visita à casa dos pais, para onde foi de carona, Mark Boyle conversou por telefone com a revista GALILEU. Foi um lance de sorte, já que ele se livrou de seu celular no ano passado. 

 
Há 4 anos, Mark Boyle decidiu viver sem nenhum dinheiro (Crédito: Jose Lasheras)

Veja a entrevista: 

Quanto tempo você viveu sem dinheiro?
Foram dois anos e meio, quase três. Eu vivi num pedaço de terra, onde cultivava minha própria comida. Eu uso um pouco de energia solar para o meu laptop, que é o único modo de me comunicar com o resto do mundo - eu tenho que conseguir mostrar às pessoas que é possível viver sem dinheiro. Tomo banhos em um rio aqui perto. Uso materiais da natureza no meu dia-a-dia: escovo meus dentes com ossos de animais misturados com sementes. 

Mas como é sua rotina? Como foi seu dia hoje, por exemplo?
Foi bem normal na verdade, sempre me fazem essa pergunta. Eu coletei frutas, tomei banho no rio... Tem alguns dias que passo inteiro plantando, outros colhendo. Em alguns outros eu recolho lenha. Daí volto a plantar. Meu dia-a-dia é basicamente ir atrás das coisas essenciais sem gastar dinheiro. E isso exige habilidades muito básicas. Além dessas coisas, também fico cuidando da comunicação, falando com a mídia. Sabe, minha história fez sucesso nos jornais daqui e acabei dando muitas entrevistas. Escrevo bastante, acabei de terminar de escrever um segundo livro que será lançado no final do ano. Mas, ao mesmo tempo em que cuido dessas coisas, tenho que sobreviver. 

O que fez você seguir esse estilo de vida?
Eu estava em uma época de questionamentos, pensando sobre todos os problemas do mundo: destruição das florestas, trabalho forçado, extinção dos recursos da natureza. Estava pensando nos problemas ecológicos e sociais, em quais deles eu poderia trabalhar, e percebi que todos têm um denominador em comum. Eles são causados pelos vários graus de separação entre o consumidor e o que ele consome. A gente não sabe por quais processos os produtos passam, quais os danos que eles causam. Não sabemos mais como o que consumimos é produzido. Aí eu percebi que o dinheiro era um fato muito importante dentro disso, ele nos separa do que consumimos. 

Minha primeira ideia foi falar sobre as conseqüências do uso do dinheiro, porque todos sabemos de seus benefícios, mas ninguém fala de suas conseqüências. Mas depois de 6 meses discorrendo sobre isso, vi que eu deveria dar o exemplo. Acredito muito na frase de Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”. Se eu vou falar disso, o mínimo que eu deveria fazer é viver isso. Acho que dinheiro nos causa danos de várias formas. Combinado com outros fatores econômicos, como a divisão do trabalho e economia de larga escala, está destruindo a natureza, porque não vemos os efeitos de nossas compras no ambiente.

Você é formado em administração de empresas. Isso tem alguma coisa a ver com o rumo que tomou?
Claro. Compreender como tudo funciona foi muito crucial. Quanto mais você entende de economia e dos processos envolvidos, mais você percebe que é insustentável. Durante 4 anos estudando economia, eu nunca ouvi falar do mundo real. Ninguém fala de pessoas, solo, oceanos, florestas. Só aprendemos teorias e equações, sem nos importar com o mundo real e com o fato de o estarmos destruindo. Isso me deu uma ideia das falhas básicas do nosso modelo econômico. O que estou tentando fazer é criar uma nova história, explorar um novo modelo que não seja tão dependente do dinheiro, baseado na comunidade e na relação com a terra. 

O que sua família pensou dessa mudança?
Eles me deram muito apoio. De inicio, eles não falaram muito sobre isso, porque foi uma mudança muito súbita. Mas hoje eles me dão apoio total, vêem que o mundo fica cada vez pior. Quanto mais conversamos, mais eles percebem que nos próximos cem anos as coisas vão ficar muito difíceis, inclusive para seus futuros netos. 

Nos últimos meses você voltou a lidar com dinheiro. Por quê?
Estamos começando um projeto de comunidade onde possamos viver 100% da terra. Onde possamos viver de um modo que não haja trocas. Vamos plantar comida e dar cursos para quem não souber plantar. Os cursos serão livres. As pessoas que forem para os cursos também irão produzir as comidas nessa terra. Queremos mostrar um outro modo de viver junto, de produzir as comidas de que precisamos. A intenção não é só reduzir nosso impacto no planeta, mas queremos fazer uma economia baseada no “dar”. Não acreditamos no “dar” condicional, que é o “trocar”, o “eu te dou isso se você me der aquilo”. Esse é um jeito muito cruel de viver. Não precisamos sempre receber algo em troca. 

Você acha seu movimento vai ganhar mais adeptos?
Em 2008, quando a crise estourou, o movimento cresceu muito. E agora cresce bastante em países como Grécia e Portugal. É interessante ver que, quando a economia normal se deteriora, as pessoas começam a procurar por outros modos de viver. Estamos crescendo bem rápido. Quando tudo começa a dar errado, as pessoas procuram por um modo de se salvar. É por isso que estou tão ocupado hoje em dia, as pessoas querem saber sobre isso. Muitos querem saber como viver sem dinheiro, já que não têm dinheiro. 

E você acha que dá pra todo mundo viver assim?
Acho que precisamos de uma transição. Precisamos mostrar as conseqüências ecológicas e sociais de nossa economia atual. Acredito que as pessoas vão entender que largar o dinheiro é o único jeito sustentável de viver. Acho que viveremos uma transição para sermos menos dependentes do dinheiro, para restabelecermos nossa conexão com a comunidade e com a terra sob nossos pés.

Por Guilherme Rosa
Fonte: Galileu

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