coluna AFRODITEQUEMQUISER
O ANO NOVO DE VER ...
Por Cristina Guedes
Tudo mostra uma causa inteligente, ativa, experiente, diferente, o esplendor de renascer todas as coisas antes de começar a sentir sempre.
Por isso aguardo o ano novo de ver o Aleph agigantar-se ao primeiro inventário do Ser. E por que contar fatos ou alardes se as coisas do ano novo mudaram suas bases. Então, uma vez dividi-me, dissolvi-me, passei a sair e a procurar-me no novo Ser. E vi...
Vi o ano de ver a menina brincar, inventar, seguir a formiga até seu formigueiro, misturar água com tinta para ver o resultado da inspiração, eis o que se faz quando se é pequeno ou quando se é capaz de soltar o coração.
Vi o ano de ver a classe, o ano de ver o professor, o ano de ver as aulas, o ano de ver qualquer tremor de terra ou de amor.
Vi o ano de ver a criança engraçada que eu era e a mulher que eu seria inesperadamente depois do humor e da intuição.
Vi o ano de ver na adolescência que eu crescia sem saber para onde, talvez fosse uma estranha gigante embaixo da mochila pesada, uma ET cheia de cálculos ou pensamentos e que eu não compreendia se não fosse eu.
Vi o ano de ver a mim, o ano de ver os outros. O ano de ver o corpo, o ano de ver a alma, o ano de ver o sangue se despojando em face do conhecido.
Agora lembro-me:
O ano de ver minhas amigas melindradas porque estavam prestes a se apaixonar.
O ano de ver as freiras sufocadas por motivos do desejo atentar. O ano de ver as missas sonâmbulas do meu colégio.
O ano de ver que exigiam que eu me ajoelhasse na madeira dura e pedisse perdão só porque minhas pestanas não estavam de corpo presente.
O ano de ver no sermão do padre como Jesus dizia coisas parecidas com a gente que eles chamavam de crianças.
O ano de ver o meu ídolo pendurado numa cruz, querendo me dizer que a vida nascendo era tão sangrenta quanto morrer.
O ano de ver que aquele amor não me desfitava. O ano de ver e dizer para ele que eu via o abismo do mundo e que aquilo que eu via me valeria o dia de nascer.
O ano de ver que eu era docemente purificada pela essência do crescimento.
O ano de ver minha ostensiva falta de jeito pela primeira noção de paixão; e a tudo que ele nem dizia eu respondia com um simples não, mas ninguém em sã consciência poderia nos acusar de contravenção.
O ano de ver a gota do meu suor descendo pelo nariz e pela boca, dividindo no meio o meu sorriso.
O ano de ver a intrusa, o ano de ver o cristão, o ano de ver a zoada do meu coração. O ano de ver a minha iniciação.
O ano de ver que eu descobria de que modo as pessoas se curavam quando amavam e que eu saberia curar pequenas mortes para quem um dia morresse de mim.
O ano de ver que amar o limpo era coisa de nostalgia, amar o puro era coisa de sabedoria.
O ano de ver tudo como era e não como eu queria. O ano de ver que em nome de ninguém tudo era bom e sorria. O ano de ver meus longuíssimos anos de boa educação.
O ano de ver o instante e depois o ano de nunca estancar a ação. O ano de ver a minha coragem só porque pediam a minha força.
O ano de ver a minha esperança de redenção dos adultos. O ano de ver minha avó confiante quando me fazia acreditar em mim.
O ano de ver a mística, o ano de ver a palavra, o ano de ver a parada, o ano de ver a praia, o ano de ver a poesia. O ano da primeira arrancada, o ano da exclamação, o ano da recomendação cheia de folhas novas.
O ano de aparecer em plena história de primeira comunhão.
O ano da Rebeca, o ano da festa, o ano da minha contemplação como mãe.
O ano da água, o ano da pedra, o ano do pão, o ano da adoração.
O ano dando assim uma nova adivinhação.
O ano da política, o ano da confusão, o ano da instabilidade, o ano da compaixão.
O ano da farsa, o ano da massa, o ano da faca, o ano da raça, o ano da sala, o ano da cabala, o ano do tarô, o ano da dor em transformação.
O ano de salvar o outro, o ano da salvação, o ano da aflição.
O ano que só muito depois eu ia aprofundar a matéria da minha mão. O ano da composição.
O ano da compreensão, o ano da felicidade, o ano da questão, o ano da gravidade, o ano da repercussão.
O ano de sorrir, o ano depois que rimos, o ano da dança, o ano da celebração.
O ano dando uma extrema unção.
O ano do amor, o ano do vôo, o ano da pássara, o ano da sinalização.
O ano de entender as experiências sábias das mães excluídas e pacientemente cuidando das horas de ameaça de morte dos seus filhos.
O ano invisível para se ver.
O ano visível para não ver.
O ano de ver a renúncia do início bem como do fim.
O ano de ver o bolo e seus ingredientes.
O ano de ver o tolo e seus incompetentes.
O ano de ver o alimento na região ardente do coração.
O ano de morder o lábio para a resignação.
O ano de ver os dias que eu temia, um atrás do outro, porque não sabia das surpresas do puro devotamento que sentimos em amar o próximo para nos respeitar.
O ano de ver e de dizer a um homem que disporia de pulsos e de todas as forças que uma mulher tem quando encontra sua própria fogueira, numa relação serena e verdadeira de todo amor que fosse a mais plena libertação.
O ano de ver que ele nem entendeu o regresso. O ano de ver minha extinção.
O ano de ver a minha continuação...
O ano de ver o broto que tem que existir na terra e nutrir seu desejo fantástico de um dia ser raiz.
O ano de ver os monges arrependidos porque ficaram sobrecarregados pelas tantas tentações da solidão.
O ano de ver uma cadeira bem velha, sem comodidade, sem envernização, apenas distraindo os meus olhos do álbum antigo lançado em minhas mãos.
O ano de ver o apascentador de ovelhas automaticamente saindo de mim para me captar tonta de meu enigma.
O ano de ver os segredos da escrita e saber dos vórtices que é se por em estado puro de criação.
O ano de ver a ligeireza corrente de um rio delirante por verter nossa orientação.
O ano de ver bom dia e boa tarde e dizer cuidado com o sol alto, ele pode baixar em você.
O ano de ver a veraz semente da igualdade mostrando sua capacidade de vencer.
O ano de ver a inocência aprendendo cada vez mais a não saber. O ano de ver a minha alegria mantendo-me discreta em minha estranha poética de viver.
O ano de ver que o nada é o começo de uma disponibilidade da alma.
O ano de ver e saber que aos poucos é dado o profundo mergulho na própria e misteriosa aura.
O ano de ver que a clareza visionária parte da linguagem que tem o dom de parecer miragem.
O ano de ver as coisas quando eu as via antes e não sabia que tinha de ver tanta vastidão.
O ano de ver a televisão e dizer que tudo que sei da televisão é apenas o seu botão.
O ano de ver que o abajur jorrar um grande triângulo de luz sobre o papel e a minha mão.
O ano de ver que o meu terremoto abre fendas poderosas nessa língua livre que é a emoção.
O ano de ver que o mundo me exige decisão para as coisas rápidas e pelas quais nem tive tesão.
O ano de ver que me movi quando vi uma velocidade de arco e flecha e não me assustei com a tensão.
O ano de ver que a esfinge me devorou porque respondi certo à sua pergunta e ela ficou muda de tanta indignação.
O ano de ver que todas as estátuas têm um toque de santidade enigmática e um jeito de matéria-prima em exaltação.
O ano de ver que se as deusas fossem vistas, elas teriam fatos e acontecimentos que encurtariam nossa visão.
O ano de ver que a poltrona muda e gorda pertence a um idêntico fabricante e recebe igual qualquer traseiro aconchegante.
O ano de ver que o artista é poeticamente inspirado enquanto o burocrata é tristemente estável.
O ano de ver a semente da lembrança, o ano de ver a árvore da criança, o ano de ver o véu e dá um ano de céu.
O ano de ver o quinto elemento, o ano de ver o sétimo raio, o ano de ver as trombetas em cima de suas cabeças.
O ano de ver os anjos, o ano de ver os cânticos, o ano de ver os sinos, o ano de ver os arcanos, o ano de ver tantos meninos erguendo a lata e brindar a vós.
O ano de ver o pão salvar a missão.
O ano de ver soprando e alcançando a liberdade de um eterno presente que se sente em dizer:
FELIZ 2010 pra você.
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@Cristina Guedes, colunista, começou cedo escrevendo em jornais e revistas. De carreira versátil, ainda jovem tornou-se modelo e apresentadora de tv. Depois, foi redatora publicitária, autora de peças teatrais e entrevistadora em Belo Horizonte, onde viveu a maior parte de sua carreira. Como escritora está em diversas Antologias pelo país, dona de um texto gratificante e cheio de cumplicidade com o leitor. Cristina é jornalista, ensaísta e poeta. Autora do Livro, QUANDO RIEM AS MAÇÃS - que reúne deliciosas crônicas e tiradas com humor sobre homens, mulheres, negócios, políticas tropicais e ainda traz a divertida e envolvente história da mineira Ritinha. Atualmente escreve para diversas revistas e finaliza o livro intitulado A Casa do Mundo no Reino dos Arcanos.
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