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A Liberdade Natural da Mente no Dzogchen ou “Grande Perfeição”
por Paulo Borges - Presidente da União Budista Portuguesa

A Liberdade Natural da Mente no Dzogchen ou “Grande Perfeição”


“Abandonai pois a mente que imagina alvos
E, sem nada conceber, permanecei sem corrigir nem alterar o que se manifesta.
Sem distinguir o sujeito do objecto, ficai na grande liberdade natural”


- Longchenpa


Pretende este estudo apresentar alguns aspectos fundamentais dos ensinamentos e prática do Dzogchen ou “Grande Perfeição”, a partir da trilogia A liberdade natural da mente, de Longchenpa (1308-1363), um dos mestres mais eminentes da primeira tradição do budismo tibetano, a dos Antigos, ou Nyingmapa. Considerado, na classificação da mesma escola, e na perspectiva da via gradual (lam rim), como o último e supremo dos nove veículos para o reconhecimento da natureza primordial da mente e de todos os fenómenos - a natureza de Buda, designação não de uma figura histórica, mas da realidade plenamente iluminada - , o Dzogchen é todavia, em si mesmo, não propriamente uma via ou um veículo, mas o próprio estado de experiência imediata da perfeição natural e absoluta de todas as coisas, independente dos métodos e práticas que o podem preparar e mesmo de qualquer tradição, religião ou escola específicas . Atesta-o o facto do Dzogchen não ser exclusivo do budismo, mas surgir também na tradição Bön, a anterior religião do Tibete , com linhagens próprias que ainda hoje o veiculam . Não sendo sequer procedente do Tibete, apesar de aí se haver desenvolvido e preservado, a tradição Bön, e mestres budistas como Namkhaï Norbu Rinpoché, consideram que o Dzogchen foi primeiro ensinado por Shenrab Miwoché, que os adeptos do Bön sustentam ser o primeiro Buda a manifestar-se no planeta, em 16016 A. C. (segundo outras fontes, apenas em 1856 , 1857 ou 1917 A. C. ), a sul do monte Yungdrung, na região semi-mítica, semi-geográfica de Olmo Lungring, que alguns relacionam com o Monte Kailash e outros com a Pérsia e o Médio-Oriente. As primeiras escrituras Bön terão sido trazidas para o reino de Zhang-Zhung, situado a Oeste do actual Tibete e a ele mais tarde anexado pelo rei Songtsen Gampo . Todavia, segundo a tradição budista tibetana, o Dzogchen, na sua forma actual e mais desenvolvida, procedeu de Samantabhadra ou Kuntuzangpo, o Buda primordial, a-histórico, no plano do Dharmakaya ou Corpo Absoluto, foi transmitido a Vajrasattva, no nível intermédio e subtil do Sambhogakaya ou Corpo de Fruição, e por este a Garab Dorjé, um Buda que manifestou um Corpo de Emanação, ou Nirmanakaya, sob forma humana , cerca do ano 184 A. C., no reino de Oddiyana, no Noroeste da Índia . De Oddiyana procederam também muitas linhagens de mestres dos Tantras superiores, verificando-se aí o miraculoso nascimento de Padmasambhava, igualmente mestre Dzogchen e futuro introdutor do budismo tântrico no Tibete. Não tendo uma origem tibetana, o Dzogchen é considerado por Namkhaï Norbu, um dos seus maiores representantes actuais, como algo que, não pertencendo propriamente ao budismo nem ao Bön, é todavia a essência de toda a espiritualidade e logo da cultura tibetana, podendo ser utilizado como uma chave para a sua compreensão global . Todavia, se o Dzogchen é fonte de filosofia, religião e cultura, é porque nada disso é, mas antes a experiência concreta de descoberta e fruição do estado primordial de si e de todas as coisas, uma plenitude livre de todas as elaborações, ilusões e artifícios. Uma plenitude que não se reduz à experiência da vacuidade, mediante a mera ausência de conceitos (em tibetano, mitokpa), mas que integra, tal como na abordagem tântrica, toda a energia que é a sua manifestação contínua, em todas as suas esferas, mesmo a conceptual e emocional, sem procurar corrigir o que quer que seja. Esta a diferença, em termos de método e de “resultado”, entre uma via súbita, como o Zen, e uma não via, como o Dzogchen . 

É esse estado primordial, não dual e sempre presente da mente e dos fenómenos, ou, numa perspectiva já exterior, de todos os seres e coisas, que se designa como Natureza de Buda, a qual é alheia à representação habitual do budismo como doutrina ética, filosófica ou religiosa. Todavia, a transmissão da experiência de reconhecimento e fruição desse estado, que pode ser directa, mediante o espírito, simbólica, por objectos, imagens e parábolas, ou oral e escrita, recorrendo à palavra e ao intelecto , adapta-se naturalmente, não só às diferentes capacidades e disposições dos indivíduos, mas ainda aos seus paradigmas culturais. É assim que, em termos exteriores, e para as necessidades de classificação intelectual, surge um budismo e, dentro deste, um budismo indiano, um budismo chinês, japonês, tibetano, etc. Na verdade, na experiência búdica, ou seja, na experiência do Despertar da ilusão de todos os pressupostos, referências e conceitos, não há budismo nem sequer Buda, não porque deixe de haver um sujeito que antes realmente exista, mas porque deixa de haver a ideia de haver, de ter alguma vez havido e de poder alguma vez haver, e logo de poder cessar, um sujeito intrínseca e absolutamente existente, como o indicam os textos onde se expõe a verdade absoluta, como o Sutra do Diamante ou o Sutra do Coração do Conhecimento Transcendente . Como o sugere a língua tibetana, cujo termo para o que designamos como budista é nang pa, o que apenas designa aquele que se ocupa do interior ou um cuidar do interior. Aquele que habita uma intimidade não apenas ou propriamente sua, mas de todos os fenómenos, como sugere o vocábulo próximo snang wa, que designa a luz única de tudo o que se manifesta, de tudo o que aparece, externa ou internamente. A nossa intimidade é o mundo e somos a intimidade do mundo. Sem interior nem exterior.

Segundo a experiência e doutrina dos três corpos (kayas) de Buda, a realidade primordial plenamente iluminada manifesta-se em três níveis: mente, verbo/energia e corpo físico (usamos a palavra “mente” em vez de “espírito” para evitar conotações substancialistas ou religiosas). Enquanto ao Nirmanakaya, corpo de aparição física, corresponde nesta era o Buda Shakyamuni e o ensinamento das vias comuns dos Sutras, ao Samboghakaya, corpo subtil de fruição, corresponde Vajradhara e o ensinamento dos Tantras, e ao Dharmakaya, Corpo absoluto da realidade em si, corresponde Samantabhadra, o Buda primordial, cuja experiência e ensinamento não é senão a da auto-perfeição eterna e imediata de tudo, ou seja, o Dzogchen. Os veículos fundados nos Sutras, como o Hinayana e o Mahayana, preconizam uma prática particularmente ligada ao corpo, pela renúncia exterior ou interior aos actos negativos e a adopção dos positivos como antídotos, sendo que o primeiro visa o reconhecimento da ausência de entidade intrínseca, ou vacuidade, do eu, e o segundo lhe acrescenta a de todos os fenómenos, bem como a compaixão universal. Os veículos assentes nos Tantras propõem uma prática fundamentalmente ao nível do verbo/energia, procurando, a partir da experiência da vacuidade e da compaixão, não a renúncia, mas a transformação das emoções negativas na sua dimensão primordial de consciência pura. Em todos eles há portanto a ideia de algo a praticar por alguém que tem um dado caminho a percorrer até à Iluminação, vista como um objectivo a alcançar ou um potencial a realizar, ou seja, vista em função do sujeito não iluminado e da sua percepção distorcida da realidade e de si mesmo. Todos estes veículos são condicionados pelos “três círculos” (‘khor gsum) da mente conceptual (sems): sujeito, objecto e acção. Ao contrário, o Atiyoga ou Dzogchen consiste no simples e imediato reconhecimento e permanência no estado natural e não-dual de Iluminação, experienciado desde o início como a verdade e realidade única de tudo, como perfeição absoluta na qual nada há nem jamais houve a obter ou a rejeitar, a renunciar, a corrigir ou a transformar. No Atiyoga, ou “Yoga Primordial”, a palavra “yoga” não denota, como em sânscrito, a partir da raiz –yuj, um vínculo e um domínio, no caso o acto de “atrelar” os cavalos , o que remete ainda para uma experiência de dualidade, oposição e esforço , mas o seu sentido é o da palavra equivalente em tibetano: rnal ´byor, o unir-se ou fundir-se no “estado fundamental” ou o fruir a “condição autêntica” . Menos uma via do que uma não-via, a prática não supõe aqui um método e um caminho em direcção a um qualquer objectivo ou resultado, praticar não visa evitar ou realizar algo, praticar não é uma “prática”, mas um simples residir no que é, nesse autoreconhecimento imediato e constante do real, onde todo o fenómeno emergente é o “jogo” ou dinamismo da natureza e liberdade primordiais da presença/consciência não-duais, rigpa, e como tal perfeição espontânea e pura, no sentido de que tudo o que se manifesta é livre de qualquer limite conceptual: ser e não ser, princípio e fim, positivo e negativo, puro e impuro, etc. É um exercício fundamentalmente contemplativo, mas onde a dificuldade, para mentes habituadas ao esforço para fazer ou evitar algo, reside exactamente em manter uma consciência impecavelmente atenta sem tensão, objecto ou objectivo, ou seja, sem nada fazer, em termos de adopção ou rejeição, enquanto simultaneamente se vai vivendo a vida quotidiana e pensando, dizendo e fazendo tudo o que espontaneamente brota do fundo do ser, na natural harmonia, criatividade e compaixão da não-dualidade. O que pode ser, pelo menos no início, muito mais árduo do que abandonar-se às objectivações da mente e às distracções do re-agir que geram e reproduzem o ilusório mundo convencional. 

Tradicionalmente, e normalmente, ao menos no budismo, os ensinamentos Dzogchen não se comunicam senão como corolário da via gradual, mais ou menos longa segundo as qualidades e aplicação dos discípulos, em que primeiro se renuncia ao sofrimento e às suas causas, os dez actos negativos de corpo, palavra e mente, depois se transforma o egocentrismo pelo cultivo do Bodhicitta, o espírito de Iluminação, tendo em vista atingir o estado de Buda para libertar todos os seres do sofrimento da existência condicionada, e depois se transmutam progressivamente todos os conceitos e emoções na experiência da vacuidade última de si e de todos os fenómenos. Nesta perspectiva, antes do acesso ao Dzogchen é suposto que a mente se haja estabilizado na prática da meditação com suporte, em que a concentração unidireccionada na respiração ou num objecto, exterior ou interior, proporciona a calma mental, shiné, tendo-se depois emancipado dos suportes meditativos na experiência da visão profunda, lhaktong, em que todos os fenómenos, exteriores e interiores, são acolhidos com equanimidade, sem nada rejeitar ou adoptar, numa consciência panorâmica e não-dual . Todavia, e em si mesma, a experiência do Dzogchen é a da perfeição e iluminação eterna, actual e natural da mente e de todos os fenómenos, e como tal pode irromper subitamente, independentemente de quaisquer métodos ou exercícios preparatórios. É nesse sentido que é apresentado como um ensinamento além da lei de causa e efeito, pois consiste na introdução directa ao incondicionado, além do pensamento e da acção dualista, ou seja, além do karma . Segundo alguns textos, a via gradual, necessária para os seres comuns, em função da maior ou menor intensidade dos seus obscurecimentos conceptuais e emocionais, pode tornar-se, para outros, um obstáculo à, ou um desvio da, compreensão e fruição imediata da “Grande Perfeição”. Daí, sobretudo recentemente, que o Dzogchen seja mais divulgado e, por vezes, directamente ensinado, embora com fortes reservas dos mestres mais tradicionais, que apontam o risco do prejuízo de muitos pelo benefício de alguns, considerando que, sem uma prévia purificação da mente, o acesso à prática do Dzogchen é como começar a construir uma casa pelo telhado, aludindo ainda ao perigo de alguém, presa ainda da consciência egológica, se presumir um ser plenamente realizado, não entendendo que a Iluminação jamais pode ser uma realização subjectiva. Em qualquer dos casos, seriam grandes e graves os riscos de extravio e queda.

De qualquer modo, seja por via gradual, seja por introdução directa, ou não-via, não se considera que o acesso ao Dzogchen possa residir numa mera relação intelectual com os textos. Esta pode ser válida como instância preparatória ou posterior, de iniciação ou esclarecimento filo-sóficos, sem que, para ser uma experiência integral, dispense uma relação pessoal com um mestre realizado, que possa efectuar a indispensável apresentação da natureza da presença/consciência pura, rigpa, ao discípulo, a qual pode ser oral, simbólica ou directa, de espírito a espírito, fundindo-os num só. 


Considera-se que a obra que nos ocupa, Rangdröl Khorsum, em tibetano, pertence a uma das três séries de ensinamentos Dzogchen: semdé, a “série da mente”, dita mais apropriada para os intelectuais, aqueles que carecem de raciocínios para compreender. É uma trilogia, sendo cada uma das suas partes composta por dois textos. O primeiro é um longo poema em verso em três capítulos, que expõem a visão, a meditação e o fruto, sendo o segundo um döntri, uma “instrução essencial” sobre a prática, que indica o modo de nela se integrar a vida quotidiana, a experiência do sono e do sonho e a dos vários bardo, ou estados intermédios, que se sucedem ao momento da morte. Actualmente os comentários a respeito da presente obra perderam-se.

Da trilogia elegemos a terceira parte, intitulada “A Liberdade natural da igualdade segundo a Grande Perfeição”, texto que o tradutor e apresentador, Philippe Cornu, considera “o mais radical e [...] abrupto dos três” . Começando pela homenagem ao Buda primordial, Samantabhadra, e pela afirmação de que “o estado da Grande Perfeição” a tudo engloba, igualando todos os fenómenos num puro e eterno despertar, esta visão reclama-se da expressão intemporal de “uma doutrina que não se realiza nem pelo esforço, nem pela adopção ou rejeição”. Embora considerando os nove veículos budistas como adequados às capacidades dos seres, Longchenpa esclarece que, “em verdade, (...) / não há nem veículos nem renúncia, / nem idas nem vindas, nem antídotos nem obtenções”, pois “todas as coisas são o estado de realidade absoluta, imóvel e imutável”. O bodhicitta, o “espírito de iluminação”, não é pois, contrariamente à perspectiva do Mahayana, algo a ser cultivado, primeiro em intenção e depois em aplicação, começando por ser um bodhicitta relativo, mas antes “um estado espontaneamente presente e luminoso desde sempre”, o bodhicitta absoluto. Não há senão que permanecer, “completamente à vontade”, num repouso sem artifícios, nesse “estado natural” de si e de tudo, sem captar objectos na conceptualização discriminatória e predicativa, sem procurar ou modificar, “negar, afirmar, adoptar ou rejeitar o quer que seja”. Assim, sem conceptualizar nem moralizar, sem as rejeitar nem a elas aderir, as cinco emoções procedentes da mente obscurecida pela dualidade, responsáveis pela sua errância nos seis mundos psicocosmológicos do samsara - desejo-apego, ódio-aversão, ignorância, orgulho e ciúme - , desde que surgem espontaneamente se convertem nos cinco respectivos aspectos da Sabedoria primordial, manifestados nas cinco famílias de Budas . Tudo o que emerge de rigpa, a presença/consciência pura, vacuidade, luminosidade e criatividade indissociáveis - ou, na terminologia do Dzogchen, essência, natureza e energia - , nele imediatamente se auto-liberta, não carecendo de ser rejeitado, corrigido ou transformado, o que marca toda a diferença do Atiyoga a respeito dos Sutras e dos Tantras. Assim as manifestações mais comuns e elementares do estado primordial se reconhecem como a mandala, a global estrutura simbólica, da sua “perfeição espontânea”. Os cinco agregados (skandhas) componentes da experiência do eu-sujeito - forma, sensação, percepção, concepção-impulsão e consciência dualista - são desde o início reconhecidos como “os budas das cinco famílias”, do mesmo modo que os cinco elementos cósmicos - terra, água, fogo, ar e éter-espaço - são as suas respectivas consortes, consoante a iconografia tântrica . Ou seja, todas as formas da experiência mental e sensível do mundo, todas as percepções, são o próprio estado natural e primordial de iluminação.

Vista na luz que é a sua, a luz primordial e sempre instante, “a existência fenomenal é absolutamente pura”. Livres da parcialidade do “intelecto discriminante”, da errância especulativa, da normatividade moral acerca do que há a fazer e a evitar e da ascese que supõe “níveis de progressão” ou vias por renúncia e adesão, livres, como diz Longchenpa, “de todas as veleidades” – poderíamos dizer, glosando o Eclesiastes (1, 2), de todas as “vaidades” - que “se esgotam a querer corrigir o céu”, livres “de todo o artifício corruptor”, todas as coisas são o esplendoroso e espontâneo desdobramento e cumprimento da “realidade absoluta”. Nada sendo estranho à natureza imaculada e imaculável do Real, alheia a qualquer noção de identidade e diferença, união e cisão, uno e múltiplo, ser e não-ser, toda a fenomenalidade, tudo o que na perspectiva das consciências dualistas emerge como puro e impuro, samsara e nirvana, universo, seres e Budas, é visto como o seu “prodígio mágico” ou “jogo” ilusório - note-se que a ilusão remete aqui menos para o sentido de erro ou engano, consistentes no tomar como existente o que o não é, dominante na ontognosiologia ocidental, do que para aquele outro, de ironia e diversão lúdica, afim à il-lusio, onis latina, ou, mais, de impulso criador, mantido no castelhano e plenamente assumido, entre nós, no pensamento poético de Teixeira de Pascoaes . Não sendo a realidade interpretada em termos de seres, mas de fenómenos igualmente vazios e aparentes, enquanto formas que, emergentes na interdependência com todas as demais e com a própria percepção, transcendem toda a característica conceptual e não possuem substancial existência própria, nada em verdade existe independentemente desse incriado jogo criador que é simultaneamente repouso e movimento.

A manifestação é assim radicalmente irrepresentável, sem substância, fundamento, origem, causa ou fim, não havendo em si ou fora de si algo de fixo e categorizável, o que mostra o vazio de “todas as designações intelectuais”. O que não impede que seja na mesma realidade única, omni-envolvente como o “espaço”, que se manifestem os múltiplos “sistemas filosóficos” procedentes do “intelecto discriminante”, os quais, como todas as coisas, igualmente se “reunificam” e libertam no “espírito de despertar da Grande Perfeição” . A libertação das etiquetas mentais, a evasão da “gaiola das diferentes filosofias”, acompanha-se da dos estados psicológicos, reconhecendo-se a insubstancialidade das “alegrias e penas” ou dos “altos e baixos” da existência . 

A experiência da Grande Perfeição de tudo, desde o início e desde sempre, o desvelamento de todos os fenómenos como a própria natureza de Buda, cumpre o fito dos vários níveis de ascese budista na exacta medida em que mostra a sua ilusão constitutiva. Assim, desde os “três veículos da causa”, os dois níveis do Hinayana e o Mahayana, aos seis veículos da “fruição”, do Tantrayana, externos e internos, incluindo o próprio Atiyoga onde o Dzogchen emerge, se denuncia como todos afinal “embaraçam” a “mente imaculada” “no esforço, na realização, no abandono, na adopção” ou ainda, no caso do Atiyoga, no apego ao “inconcebível” . É que, se “o espírito de despertar é a própria essência do espaço”, ou seja, se a Iluminação é natural e omni-englobante, não há sequer lugar para que alteridade alguma se lhe acrescente ou a diminua. “Onde se encontra então aquele que percorre a via do despertar ?” - interroga Longchenpa, sugerindo que, na súbita assunção e reconhecimento, pela mente que julga progredir em direcção ao real e à verdade, da sua inerência aos mesmos, cessa a ficção do Dharma como uma via e da Budeidade como algo a ser realizado ou atingido por alguém. Contemplação que é a essência mesma da sabedoria transcendente, transcendente da própria noção de haver sabedoria e sua realização de um sujeito, já segundo o Prajna-paramita sutra . Todos os desvios e obscurecimentos, dos quais resulta a ideia de progresso espiritual, procedem do intelecto que, não abdicando da apreensão objectivante, se obstina em “olhar aí onde não há nada a ver”, velando-se ilusoriamente a luz própria, tanto mais quanto assim porfia na zelosa busca da virtude e do conhecimento. Sendo “a natureza da mente (...) pura desde sempre”, sem “nada a criar nem a dissipar”, toda a via pela qual se busque a si mesma é afinal um artifício e um extravio onde não pode deixar de se iludir - iludir agora no sentido do fundamental engano que leva a procurar pela reflexão e pelo conhecimento objectivante e conceptual, ou pela própria meditação e prática “espiritual”, o que é primordial, pura e espontânea presença, sem dualidade, atributos ou características . 

Natureza última da mente e de todas as coisas, ela é o “tal qual”, Buda primordial e Iluminação universal, sem limites nem centro, sem “alto” nem “baixo”, sem dicotomias. Ela é a “quinta-essência” de todos os ensinamentos e de todos os Budas, inacessível por qualquer via que não o seu reconhecimento e fruição imediatos, inacessível por qualquer via que o seja, diferindo-a como objecto-objectivo a alcançar. Exercícios ascéticos, métodos e técnicas meditativas, visões, doutrinas, símbolos, palavras e acções são ultimamente obstáculos se não se dissolverem na experiência, “sem esperança nem temor”, disso que é . Livre do agir e do fazer o quer que seja, desguarnecido das armas com que se defende de ser o que é, a mente repousa na frescura desse reconhecimento de que todo o fenómeno emergente, exterior ou interior, sujeito ou objecto, é a cada instante o incondicionado e espontâneo “jogo” de rigpa . Sem noções de ganho ou de perda, de bem ou de mal, sem nada afirmar ou negar, quebram-se as cadeias da “visão”, da “meditação” e da “acção”, as três instâncias da realização espiritual nos anteriores veículos. Sem distracção nem não-distracção cessam as crispações da “concentração” que porfia em unificar o fluxo lúdico das manifestações do Corpo absoluto, reconhecido como a própria “mente natural”. Cessando todo o “esforço” e “zelo”, cessam “as causas e os futuros frutos do samsara”, ou seja, a constituição kármica das existências condicionadas pelo ilusório auto-condicionamento da mente que ignora a sua perfeição inata e, pelo sucedâneo desejo-aversão, se extravia no bem e no mal, nas “absorções meditativas” e no apego à vacuidade, tanto nos mundos inferiores como nos ditos superiores do plano do desejo, da forma e do sem forma . 

Na conclusão deste primeiro capítulo d’ “A Liberdade natural da igualdade segundo a Grande Perfeição”, que diz tratar “da libertação dos seres de capacidade superior pelo meio da realização da base”, Longchenpa apresenta uma visão absolutamente pura, não dual, das “aparências”, tão desprovida de “esforço” e “elaboração” como elas mesmas. Mente e aparências, mente-aparências e aparências-mente, “única realidade absoluta imutável” onde inseparavelmente “as coisas aparecem como formas variadas, incessantes e individualizadas”, são “o próprio estado da Grande Perfeição natural”. Sabedoria incriada e omnipenetrante, simples e natural, “ela é o supremo segredo” e reconhecê-la é “a proclamação (...) do oceano dos mistérios” . Segundo a classificação budista dos quatro níveis da realidade, da consciência e, portanto, do próprio ensinamento, oral ou escrito - exterior, interior, secreto e além do secreto - , diríamos que o Dzogchen corresponde ao último. Além do secreto não por ser, em si, a mais oculta e sigilosa das doutrinas e práticas, mas, exactamente ao contrário, porque a sua extrema simplicidade e naturalidade se tornam o mais difícil de transmitir e de experienciar numa época onde se confunde profundidade com complexidade ou complicação das elaborações conceptuais e dos estados emocionais, ao ponto de se fazer com que o mais evidente surja como o mais hermético.

Nesta devolução da consciência e da vida à inocência do devir universal, tal o infantil jogo de Heraclito , ambiguamente retomado por Nietzsche , a questão é permanecer na frescura e intensidade originária da experiência, seja ela qual for, sem lhe reagir, desejando-a com apego, rejeitando-a ou sendo-lhe indiferente, isto é, sem lhe apor o quer que seja. O que se estende, naturalmente, às próprias formas de a ela reagirmos, ao desejo-apego, à aversão e à indiferença, os quais, se não forem por sua vez objecto de desejo-apego, aversão e indiferença, se forem plenamente contemplados, sem qualquer re-acção, sincopando o processo da sua intérmina reprodução, impedindo que se convertam em tendências habituais e inconscientes, ou seja, em impregnações e impulsos kármicos latentes, naturalmente se auto-libertam na única base e fonte universal, a realidade absoluta. Como diz Chögyam Trungpa: “Deixemos pois os fenómenos brincarem. Deixemo-los ridicularizarem-se por si mesmos” . Se não imaginarmos que há problemas, se, quando imaginarmos que há problemas, não reagirmos reproduzindo o problema continuando a imaginar que há soluções, o problema é a sua própria auto-dis-solução. Como se diz: tudo é como uma serpente cujos nós se desatam por si mesmos .

É assim que, conforme sugere a palavra tibetana ‘agro-wa, que designa o acto de ir, de se mover, de existir, mas também os seres arrastados pelas ilusões nos seis mundos samsáricos, este sentido negativo da sua errância parece ser inerente ao facto de se imaginarem mét-odos, vias, sentidos e objectivos quando tudo é desde sempre e para sempre livre dos nossos conceitos de origem, fim, lugar, sentido ou rumo. Mas, sem nos refugiarmos do que é como o que instantaneamente advem, sem nos reproduzirmos como “cadáveres adiados” na memória do passado ou em projectos de futuro, sem nos adiarmos mais, seja por medo ou por esperança, seja em nome da moral, da filosofia ou da religião, do homem, de Deus ou do Buda, tudo é Grande Perfeição. Tudo é Grande Perfeição. Que alívio ! 

 

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Co-criando A NOVA TERRA

«Que os Santos Seres, cujos discípulos aspiramos ser, nos mostrem a luz que
buscamos e nos dêem a poderosa ajuda
de sua Compaixão e Sabedoria. Existe
um AMOR que transcende a toda compreensão e que mora nos corações
daqueles que vivem no Eterno. Há um
Poder que remove todas as coisas. É Ele que vive e se move em quem o Eu é Uno.
Que esse AMOR esteja conosco e que esse
PODER nos eleve até chegar onde o
Iniciador Único é invocado, até ver o Fulgor de Sua Estrela.
Que o AMOR e a bênção dos Santos Seres
se difunda nos mundos.
PAZ e AMOR a todos os Seres»

A lente que olha para um mundo material vê uma realidade, enquanto a lente que olha através do coração vê uma cena totalmente diferente, ainda que elas estejam olhando para o mesmo mundo. A lente que vocês escolherem determinará como experienciarão a sua realidade.

Oração ao Criador

“Amado Criador, eu invoco a sua sagrada e divina luz para fluir em meu ser e através de todo o meu ser agora. Permita-me aceitar uma vibração mais elevada de sua energia, do que eu experienciei anteriormente; envolva-me com as suas verdadeiras qualidades do amor incondicional, da aceitação e do equilíbrio. Permita-me amar a minha alma e a mim mesmo incondicionalmente, aceitando a verdade que existe em meu interior e ao meu redor. Auxilie-me a alcançar a minha iluminação espiritual a partir de um espaço de paz e de equilíbrio, em todos os momentos, promovendo a clareza em meu coração, mente e realidade.
Encoraje-me através da minha conexão profunda e segura e da energia de fluxo eterno do amor incondicional, do equilíbrio e da aceitação, a amar, aceitar e valorizar  todos os aspectos do Criador a minha volta, enquanto aceito a minha verdadeira jornada e missão na Terra.
Eu peço com intenções puras e verdadeiras que o amor incondicional, a aceitação e o equilíbrio do Criador, vibrem com poder na vibração da energia e na freqüência da Terra, de modo que estas qualidades sagradas possam se tornar as realidades de todos.
Eu peço que todas as energias e hábitos desnecessários, e falsas crenças em meu interior e ao meu redor, assim como na Terra e ao redor dela e de toda a humanidade, sejam agora permitidos a se dissolverem, guiados pela vontade do Criador. Permita que um amor que seja um poderoso curador e conforto para todos, penetre na Terra, na civilização e em meu ser agora. Grato e que assim seja.”

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